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Lobos

            Manuel Afonso da Costa Barros foi uma das personalidades mais importantes de toda a história do Pinhal do Rei (Pinhal de Leiria). Em 1789 era Cabo dos Guardas do Real Pinhal de Leiria, em 1807 Director das Fábricas Resinosas, em 1824 Inspector da 1ª Divisão do Pinhal de Leiria e em 1847, já com 80 anos de idade, foi nomeado Administrador do Pinhal de Leiria, interinamente.
            Em 4 de Abril de 1812, enquanto Director das Fábricas Resinosas, envia um Ofício a D. Miguel Pereira Forjaz, ministro e secretário de estado dos negócios da guerra, sobre ataques de lobos à população da Marinha Grande.
            Como notas prévias, diga-se que a Fábrica da Madeira e a Fábrica Resinosa, indústrias estatais ligadas à exploração e comercialização dos produtos do Pinhal, no caso a serração de madeiras e o fabrico de pez e outros produtos de base resinosa, funcionavam no lugar do Engenho, no sítio do actual Parque Florestal; o Ofício relata a realidade nua e crua de há duzentos anos atrás na Marinha Grande, depois das Invasões Francesas, e contém “cenas” que podem ferir a sensibilidade de alguns leitores.
 
            «A bondade com que V. Ex.ª me tratou, e a consternação em que me acho com todo o povo deste lugar, e freguesia, me anima ahir por este modo que meho mais poçivel aos péz de V. Ex.ª seguro de que todo o aflito, e desgrasado, sempre encontrou em V. Ex.ª prompto remedio. Havera quinze dias, que neste lugar, hum lobo junto a huma caza apanhou hum rapaz, pelas quatro horas da tarde, e o comeu logo; hoje perto do meio dia, estando eu na Fábrica da Madeira, e sentido gritar, acodi com a gente que ali se achava, e afugentamos hum lobo, mas depois de deixar huma rapariga em estado de morrer; paçadas quase duas horas junto mesmo aos muros da fabrica, gritou huma molher, corremos em seu socorro, e achamos hum lobo comendo hum rapaz, ao pe da mesma molher, que pretendendo escaparlhe com o rapaz este foi alcançado pelo lobo, que o rastrava pª o matto, e apenas conseguimos tirarlho já quaze espirando; logo depois [julgo que o mesmo lobo] veio dentro deste logar, e perseguio outro rapaz, que hum homem ainda pode defender. Quaze todas as noutes vem dentro ao lugar e he m.to para notar, que não fazem cazo dos outros animais, e preferem os racionaes, isto creio que provem de ficarem acustumados a comer os cadaveres homanos, no tempo da desgraçada existencia do Exercito Frances neste logar. Na Vieira distante desta duas legoas, e em todas estas vezinhanças, (…) de o mesmo aonde acometem molheres, e homens, e tem chegado a entrar nas mesmas cazas. Estamos reduzidos ás maiores consternaçoens, e estes desgraçados povos, que ha pouco se virao perseguidos por feras homanas, agora o são pelos irracionais, famintos, e carniceiros.
            Nos Couttos de Alcobaça tem feito montarias, sem tanta necessidade, e tem conseguido matar alguns lobos, e afugentar os outros. Em outro tempo a Camera de Leiria dava premio aq. matava hum lobo, e mandavão se fazer algumas montarias, porem agora nestas tristes circunstançias nada se fas.
            Eu movido das desgraças que me oprimem, e a meus vezinhos, fue a Leiria falar ao Juiz de Fora para que dece algumas providençias; paçou ordem aos juízes das ventenas da Vieira, Moutta e desta, para se fazerem esperas aos lobos, mas nada absolutam.te se fês, C. negligencia dos juízes das ventenas, que são sempre tirados da ultima claçe do povo, e por isso de pouco carater, donde provem não serem respeitados, e em consequençia origem de muntos males, que oprimem os povos.
            Perdoeme V. Ex.ª se eu tenho exsedido alem do respeito que devo a V. Ex.ª, porem Senhor sinto vivamente a disgrasada sorte destes povos aflitos por todos os lados, ameçando vendo devorado pelos lobos o mizaravel resto únicas esperanças de nossas futuras geraçoens; este resto digo, que ajudava suas maez viúvas, ou que seus parentes conservavão servindolhes já de lhe guardar ou huns boes, ou humas vaquinhas, já de lhe apanharem de comer, pelo susto em que todos estão não se podem separar de suas vistas, aonde mesmo corre perigo. Espero que V. Ex.ª decedidamente protetor da homanidade aflita detreminará providençiar para que com segurança poçamos sahir aos campos a cuidar da piquena agricultura, tão necessaria na prezente época, e que V. Ex.ª anima a todo o custo. Fazendo-se montarias já com paizanos, ou com o Regim.to de Milicias, que aqui se acha sem exerçissio, conseguiremos ao menos intimidar, e afugentar huns inemigos tão perigosos como temíveis, huma ves acustumados a devorar corpos homanos. Rogo a V. Ex.ª que me desculpe, e me permita a honra de ser com o maior respeito,
 
De V. Ex.ª
Marinha Grande 4 de Abril de 1812
O mais hume. e obediente criado
Manoel Affonço da Costa Barros»




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